Como raízes de resistência, famílias assentadas desafiam o preconceito e alimentam o Vale

Agricultores assentados mostram, na prática, como produzem alimento, dignidade e sustentação para muitos em seu entorno

Por Maria Lemos (*)


Foto: Pedro Silvini

Em meio ao silêncio imposto pela desinformação e ao peso do preconceito, as vozes das famílias assentadas se erguem como sementes que brotam na terra árida. São histórias de luta, de cuidado com o solo e de esperança plantadas dia após dia.

Entre discursos distorcidos e silenciamentos históricos, há experiências que revelam outra verdade. Em diferentes cantos do Vale do Paraíba, famílias assentadas cultivam, com as próprias mãos, não apenas alimentos, mas também formas de viver pautadas na solidariedade.

“O produtor rural tem que ser entendido como o parceiro que ele é da população, é ele quem sustenta a agricultura. Então, é preciso ter um trabalho de entendimento e parar essa demonização do produtor como se ele fosse inimigo da sociedade. Ele não é, pelo contrário, é muito importante e precisa ser ouvido nas suas necessidades", ressalta o economista, Prof. Dr. Dráuzio Antônio Rezende.
Realidade que desmente os estigmas
No bairro Remédios, entre as 36 famílias que vivem no assentamento Comuna Manoel Neto, está a de Ana Lúcia dos Santos, que, ao lado da filha Haidee e do companheiro Lorivani, cultiva o Sítio Minha Estância — um espaço onde legumes, frutas, sucos, geleias e ovos são produzidos com compromisso, cuidado e respeito pela terra.
Ali, tudo gira em torno de uma Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA). Mais do que uma simples troca comercial, esse modelo é uma via de mão dupla: todas as quintas-feiras, na Avenida do Povo, em Taubaté, os consumidores recebem a partilha – uma cesta com alimentos frescos e variados – em troca de uma contribuição mensal de R$ 205. Em contrapartida, os agricultores têm recursos para planejar suas safras e fortalecem os laços com a economia local.
“A gente não abastece só as famílias do CSA, também fazemos parte do Programa Nacional de Alimentação Escolar [o PNAE], em que a cooperativa que compra nossos produtos abastece escolas e hospitais. Participamos também do Programa de Aquisição de Alimentos [o PAA], em que abastecemos famílias carentes. Então, queria desmistificar um pouco aquilo que as pessoas dizem sobre o assentamento, porque é mentira. Aqui produzimos e sobrevivemos da terra, e alguns precisam trabalhar fora, porque infelizmente a gente fica abandonado”, explica Ana Lúcia dos Santos, moradora do assentamento Comuna Manoel Neto há 23 anos.

Foto: Pedro Silvini

Já no Assentamento Nova Esperança, em São José dos Campos, uma paisagem que era marcada pela pastagem degradada hoje floresce com agroflorestas e hortas. É nesse cenário de transformação que vive Thaís Rodrigues da Silva, engenheira agrônoma especializada em agrofloresta, que desde 2017 cultiva a terra e distribui produtos por meio da CSA Água Juvira.
Filha de trabalhadores rurais e nascida em Crixás-GO, Thaís teve o primeiro contato com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ainda na adolescência, quando sua mãe a levou para um acampamento do movimento.
“Uma agricultura mais saudável e mais justa passa necessariamente pela democratização da terra. E o MST, dentro desse território conquistado, luta pela produção de alimentos que têm uma responsabilidade ambiental e por uma agricultura diversificada que leva alimento de verdade para os consumidores”, declara a assentada.
Apesar do sucesso na produção dessas famílias, o preconceito persiste. Thaís relatou episódios de desinformação e hostilidade, até mesmo vindos de ambientes acadêmicos.
“Já escutei muita coisa absurda sobre o movimento. Eu já ouvi o professor de plantas daninhas dizer que, para o MST, criar terra era muito fácil: era só cavar uma vala bem grande e funda, colocar alguns integrantes do lado e dar um tiro na cabeça deles. Assim, eles caíram na vala, de preferência de bruços. E que, se porventura acordassem, estariam direto no inferno”, relembra.
O desafio, portanto, está em combater a desinformação e valorizar a produção agroecológica dos assentamentos, reconhecendo seu papel essencial no fortalecimento das comunidades rurais e na construção de uma agricultura sustentável e justa.
“As pessoas precisam entender muitas coisas sobre o assunto. Uma delas é que o MST é um movimento que busca transformação social, produção de alimentos saudáveis, acesso à educação, à cultura, à saúde e muitas outras coisas além da luta pela terra. E se existem áreas de assentamentos pelo Brasil que não conseguem produzir, isso não é responsabilidade apenas do MST. É consequência de uma política pública que não chega até a ponta, que abandona as famílias e as mantém à margem daquilo que é delas por direito”, conclui.


*Sob supervisão e edição do Prof. Me. Caíque Toledo