A desocupação do Pinheirinho e o Estado em guerra com a população

Maior despejo da história do Vale do Paraíba completa mais de uma década sem reparação. Enquanto o terreno permanece vazio, os traumas seguem vivos


Por Pedro Silvini (*)


Foto: Warley Kenji / OVALE


Há lugares que desaparecem fisicamente, mas jamais deixam de existir na memória coletiva.
O Pinheirinho é um desses territórios. Ali, onde um dia floresceram ruas sem asfalto, mas cheias de dignidade, brotavam hortas comunitárias, se erguiam casas com as próprias mãos e se cultivava, acima de tudo, o sonho de uma vida justa. Também é ali que ocorreu um dos episódios mais marcantes de confronto entre reivindicação social e ação institucional no Brasil recente.
No dia 22 de janeiro de 2012, em um domingo pela manhã, pouco após moradores acreditarem em uma possível trégua na disputa judicial que durava anos, uma operação de reintegração de posse foi realizada no local.
A ação, organizada pelos governos estadual e municipal da época (sob as gestões de Geraldo Alckmin e Eduardo Cury, ambos do PSDB, respectivamente), mobilizou mais de dois mil policiais militares, helicópteros, cães, cavalaria, tratores e bombas. A cena foi tensa, em um cenário de guerra — e quem acabou no alvo foram famílias inteiras, incluindo mulheres, idosos e crianças.
Elisângela Silva, então coordenadora da ocupação, contou à época que a tensão era constante, mesmo após a notícia de que o despejo teria sido suspenso. Quando o cerco começou às quatro da manhã, o alarme foi disparado: “Acorda gente, a polícia está tomando o Pinheirinho”. A partir dali, casas foram destruídas, pertences perdidos e comunidades desfeitas. “Foram oito anos para construir nosso bairro, para perder tudo em oito segundos”, relatou.
O terreno, de mais de 1 milhão de metros quadrados, pertencia à massa falida da empresa Selecta S.A., ligada ao empresário Naji Nahas, envolvido em processos financeiros e dívidas com o município. Embora houvesse articulação federal para buscar uma solução fundiária, a decisão judicial optou pela remoção forçada, gerando debates sobre o direito à moradia e a função social da propriedade, prevista no artigo 184 da Constituição.
Atualmente, o local segue desocupado, tomado pela vegetação, enquanto a Selecta ainda não quitou os débitos tributários. O reassentamento de parte das famílias ocorreu em 2016, em conjuntos habitacionais no bairro Emha 2. Outras permanecem em diferentes ocupações urbanas, como a Ocupação Quilombo Coração Valente, coordenada por Elisângela em Jacareí.
“O Pinheirinho não era só um acampamento. Era um bairro construído com dignidade e consciência política”, afirma Valdir Martins, o Marrom, do Movimento Urbano Sem Teto, o MUST. Segundo ele, a organização interna incluía reuniões semanais, coordenação setorial e ações coletivas.

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Outro lado
À época, tanto governo de São Paulo quanto a prefeitura de São José dos Campos negaram o uso excessivo da força e defenderam a legalidade da operação.

Em nota divulgada na ocasião, o governo estadual afirmou que “a reintegração de posse foi cumprida de maneira ordenada, conforme determinação judicial”, e que “as forças de segurança agiram para garantir a integridade de todos os envolvidos”.

A Polícia Militar de São Paulo reforçou que a ação contou com acompanhamento de oficiais de justiça e que “não houve grandes resistências”. Já o prefeito joseense, Eduardo Cury, na época destacou à imprensa que o município estava providenciando “aluguel social e auxílio-mudança” aos desalojados, aprovado em regime de urgência pela Câmara Municipal.

Dirigentes tucanos atribuíram parte das críticas à disputa eleitoral daquele ano, classificando as acusações de violência como “de caráter político”.

Anos depois

Treze anos depois, o antigo terreno do Pinheirinho permanece abandonado, tomado pelo mato e sem destinação social.

 A empresa Selecta S.A. continua inadimplente com o município, acumulando uma dívida milionária em impostos. O empresário Naji Nahas, associado ao caso, ainda enfrenta contestações judiciais sobre a regularidade da posse e da origem do imóvel.

Após a reintegração, cerca de 1.600 famílias foram levadas para abrigos improvisados — ginásios e espaços públicos — onde permaneceram por meses, em condições precárias. Aos poucos, o aluguel social foi implantado, e anos depois, em 2016, parte dos ex-moradores foi reassentada em conjuntos habitacionais construídos no bairro Putim, a cerca de 15 quilômetros do centro da cidade.

O novo bairro, batizado pelos próprios moradores de Residencial Pinheirinho dos Palmares, tornou-se símbolo da reconstrução possível — mas também das feridas abertas pela violência do despejo. “O Pinheirinho não era só um acampamento. Era um bairro construído com dignidade e consciência política”, diz Valdir Martins, o Marrom, do Movimento Urbano Sem Teto (MUST).

Os moradores do Pinheirinho dos Palmares enfrentam desafios comuns às periferias brasileiras: transporte precário, falta de serviços públicos e distância dos centros urbanos. Para muitos, o reassentamento representou um novo começo, mas não substituiu o senso de comunidade e pertencimento perdido.

Memória e resistência

Atualmente, o dia 22 de janeiro é lembrado nacionalmente como símbolo da luta por moradia digna. Ex-moradores do Pinheirinho, junto a movimentos como o MUST, CSP-Conlutas e o Movimento Lula Popular, continuam organizados em novas ocupações urbanas, a exemplo do Quilombo Coração Valente, em Jacareí. “Muito além de casas, construímos consciência. O Pinheirinho nos ensinou que dignidade não se despeja”, diz Elisângela.

A repressão ao Pinheirinho é lembrada por muitos como parte de um contexto mais amplo de conflitos sociais envolvendo populações em situação de vulnerabilidade. Gilmar Mauro, coordenador nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), avalia que a atuação do poder público, em conjunto com o Judiciário, tende a se alinhar à lógica da ordem e da propriedade. “Muitas vezes, há o uso da força institucional para garantir interesses econômicos específicos”, afirma.
A responsabilização e a reparação dos impactos daquele episódio seguem sendo pauta para diversas organizações sociais, juristas e defensores dos direitos humanos. Enquanto o terreno original se deteriora, o Pinheirinho segue vivo: não como um espaço físico, mas como um símbolo de resistência e memória coletiva.

(*) Sob supervisão e edição do Prof. Me. Caíque Toledo