Assentamentos Rurais no Vale do Paraíba: entre o preconceito e a potência social

Mesmo diante de estigmas e desinformação, comunidades ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra seguem fortalecendo a agricultura familiar, promovendo renda, alimentação saudável e inclusão social


Por Pedro Silvini (*)


Poucos temas são tão disputados na arena simbólica brasileira quanto a luta pela terra. Carregados por narrativas divergentes, os assentamentos rurais e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) frequentemente são alvos de julgamentos sumários, desinformação e preconceito. 
A imagem que chega à maioria das pessoas raramente retrata a complexidade social, econômica e política desses territórios. Em vez disso, prevalece uma versão enviesada, muitas vezes alimentada por discursos ideológicos, estereótipos midiáticos e uma persistente aversão social à pobreza organizada.
Contudo, a realidade nos territórios assentados é bem diferente da estereotipada que costuma circular nos meios de comunicação ou nas redes sociais. Os assentamentos rurais são espaços de resistência e de produção de vida. São também territórios de desenvolvimento agrícola, onde famílias organizadas constroem alternativas sustentáveis de moradia, renda e alimentação. No Vale do Paraíba, essa presença tem se fortalecido. 
Em abril de 2025, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário inaugurou o Assentamento Egídio Brunetto I, em Lagoinha-SP, oficializando o direito à terra de 55 famílias do MST e promovendo acesso simultâneo ao crédito produtivo e ambiental, ações fundamentais para o fortalecimento da agricultura familiar e da soberania alimentar.
Uma pesquisa de opinião realizada no escopo deste dossiê revela o desconhecimento alarmante da população da Região Metropolitana do Vale do Paraíba: 55,6% das pessoas entrevistadas afirmam não conhecer nenhum assentamento, enquanto 14,8% sequer sabem o que é um assentamento rural. 

Mais grave ainda é o conteúdo simbólico associado a essas comunidades: termos como “invasores”, “vagabundos”, “roubo”, “extremismo” e “oportunistas” foram mencionados por uma parcela significativa dos respondentes, evidenciando o quanto o imaginário coletivo é influenciado por discursos estigmatizantes, muitas vezes reforçados pela cobertura midiática enviesada e pela atuação de grupos ideológicos radicais.

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A compreensão limitada sobre a reforma agrária no Brasil tem raízes históricas. “Na história do Brasil, sempre foi dito que o país não tinha necessidade de fazer uma reforma agrária, porque a terra já estaria distribuída corretamente. E isso sempre foi difundido no meio da sociedade”, afirma o coordenador do assentamento Olga Benário, no Vale do Paraíba, Valdemir dos Santos. Ele relembra ainda que a disputa por terra é parte da fundação do país, desde os tempos da colonização.

Esse poder está diretamente ligado à concentração fundiária, que perdura há séculos. No entanto, a Constituição Federal, em seu artigo 184, estabelece que a União pode desapropriar, por interesse social, para fins de reforma agrária, qualquer imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social — o que dá base legal à política de redistribuição da terra em casos de improdutividade.

Além da produção, os assentamentos enfrentam desafios estruturais de grande magnitude, como a violência no campo e a insegurança jurídica. Em entrevista exclusiva a este dossiê, o coordenador nacional do MST, Gilmar Mauro, revelou a existência de pressões e ameaças relacionadas à especulação imobiliária nas áreas próximas aos centros urbanos, especialmente na RMVale. A luta pelo título de concessão de uso, que impede a venda da terra e preserva seu caráter social, tornou-se uma das frentes mais urgentes para garantir a permanência das famílias no campo e impedir a mercantilização das terras conquistadas.

Outro aspecto negligenciado na cobertura midiática é o impacto econômico das comunidades assentadas. Como destaca o economista e Prof. Dr. Edson Trajano, os assentamentos têm potencial de fortalecer mercados locais, oferecer alimentos saudáveis à população urbana e romper com as cadeias de atravessadores que exploram o pequeno produtor. "As feiras de produtos orgânicos, as cestas comunitárias (Community Supported Agriculture — CSA) e os circuitos curtos de comercialização são estratégias que ampliam o acesso à alimentação de qualidade e reforçam a autonomia econômica dos agricultores. Ainda assim, o setor enfrenta dificuldades como o alto custo de insumos e a ausência de políticas públicas estruturantes — problemas agravados pela fragilidade orçamentária da reforma agrária no país."

Na base dessa resistência, há histórias como a de Ana Rodrigues, assentada em Taubaté e responsável pelo CSA Sítio Minha Estância, que resume o papel do agricultor: “Quando um agricultor produz, ele abastece o mundo. E a gente se pergunta: como seria o mundo sem o agricultor?”. O trabalho desenvolvido por sua comunidade, que inclui a doação de excedentes a famílias em situação de vulnerabilidade, revela que os assentamentos também exercem função social direta — alimentam, acolhem e distribuem dignidade.

Este dossiê parte do compromisso de desmistificar os preconceitos que cercam o MST e os assentamentos, trazendo à luz as suas complexidades, contradições e potências. A partir deste texto principal, convidamos o leitor a explorar os conteúdos complementares que aprofundam temas como a violência no campo, a representatividade midiática dos assentados, as políticas públicas e os entraves da reforma agrária, os impactos ambientais positivos das comunidades rurais e os modelos econômicos alternativos protagonizados por essas famílias.

É preciso romper o silêncio e a distorção. Ouvir quem vive a realidade dos assentamentos e enxergar, além do preconceito, a potência de uma luta por terra, alimento e dignidade.

*Sob supervisão e edição do Prof. Me. Caíque Toledo