O amor e o cuidado de quem preserva a história do cinema

Amante do mundo cinematográfico foi coroinha e até bancário, mas a sétima arte foi o que lhe deu alegria de viver

Se o cinema em São Bento do Sapucaí ainda existisse, com certeza Manoel Francisco Coutinho estaria trabalhando lá. Nascido em 17 de abril de 1957, o filho de Hilda Rennó Coutinho, a costureira da elite da cidade e de Geraldo Coutinho, o “Geraldinho dos Correios”, ele poderia dirigir um filme com as lembranças de uma infância de viagens contínuas para Cruzeiro, lugar onde nasceu, nostalgia de leitura das “Aventuras de Tintim”, seu livro favorito.

Por Maria Clara Thomaz


Além de objetos, Manoel é um colecionador de histórias.
Créditos: Arquivo Pessoal
Brincadeiras como pega-pega, esconde-esconde, bolinha de gude e queimada no largo da Igreja Matriz e também no Grupo Escolar, nos intervalos das aulas dos professores Luigi Mazzei, Juca Magro, Dona Nicolina, Seu Priante e Miguel Jacob também fariam parte do roteiro. Algumas cenas desse filme mostrariam o soar do sino da Igreja Matriz quando a enchente assustava os moradores, alguns flashes trariam as festas religiosas, a Semana Santa, o futebol do Estância Futebol Clube e Esporte Clube São Bento, o Clube São Bento Social, onde os jovens se reuniam para dançar e paquerar, o programa “Show de Nossa Gente Para Nossa Cidade”, uma espécie de show de talentos que era feito no cinema e a primeira televisão no município, novidade exclusiva na casa da Adelaidinha.

O personagem principal seria ele próprio, que foi coroinha, acólito e ministro do Padre Teófilo, que o ensinou a dirigir. “Considero o Padre Teófilo como meu segundo pai”. Manoel do Cinema, como é conhecido, foi inspetor da empresa de transporte Pássaro Marrom e teve que se mudar para São José dos Campos, onde passou em um concurso do Banespa, hoje Banco Santander e se tornou bancário. De São José retornou em 1988 para cuidar da mãe após o falecimento de Seu Geraldo. Mas foi ajudando no cinema Cine São Bento que ele descobriu seu verdadeiro amor, herdado pelo pai. “Meu pai era apaixonado por cinema”, sentimento que se tornou sagrado para ele.

O enredo da história mostraria os ingressos dos filmes ganhados por ele ao limpar o cinema com o rádio ligado, pois tinha medo de ficar sozinho lá. Até que um dia foi convidado por Tiãozinho Arantes para rodar os filmes. “Aquilo pra mim foi a glória”. O Cine São Bento foi construído por Sebastião de Melo Mendes e inaugurado em 1953. A parte de cima do cinema era destinada aos namorados e o ar condicionado era tão barulhento que parecia que um avião estava decolando.

A trilha sonora da narrativa seria de “The Washington Post March”, que embalaria as notícias do Canal 100 que surgiam no telão munido de dois projetores alemães Triunfo de 35 milímetros manuais, com sistema de projeção feito a carvão. “Às vezes a gente descuidava do projetor e acabava desligando. O pessoal lá embaixo começava a assoviar, a gente ia ver e a tela estava preta”. As notícias passavam antes dos filmes de Giuliano Gemma e Mazzaropi lotarem os 450 assentos existentes no prédio, tendo Manoel que colocar mais cadeiras nos corredores.

Ele possui muitas relíquias do cinema doadas por amigos. 
Créditos: Arquivo Pessoal
A rotina do protagonista da história em seu local preferido da cidade se resumia em abrir o Cine São Bento, checar os ingressos na bilheteria e verificar se a cortina do telão estava fechada. Depois, ele subia para a cabine, pegava a primeira parte do filme e colocava num projetor enquanto preparava os trailers da semana seguinte que iam em outro projetor. Por fim, era só colocar as músicas no alto falante, levar os cartazes para fora e esperar que o público chegasse trazendo pipocas e amendoins que eram vendidos na porta do cinema pelo pipoqueiro mais famoso da cidade, o Cirilo.

As lembranças de Manoel permeiam entre os filmes “Romeu & Julieta”, “Dio Como Te Amo”, “Bem Hur”, “Love Story” e histórias românticas e western, mas nada comparado a “Tarzan”, o filme mais popular da época. “Nós quase não víamos o Manoelzinho ali embaixo, pois ele estava sempre na cabine de projeção junto com o Tiãozinho Arantes”, é a lembrança da sambentista Lúcia de Fátima Thomaz Rosa, de 49 anos, que sempre frequentava as matinês no cinema com as amigas, no auge dos seus 15 anos. “Assim que acabava a missa, já tocavam músicas no alto falante e anunciavam os filmes do dia”.

O tempo foi passando e Manoel foi ganhando experiência, bagagem e presentes relacionados ao mundo cinematográfico, como o projetor do Tiãozinho Arantes que estava no Acampamento Paiol Grande, e muitos outros objetos. O apoio dos amigos foi tanto, que um dia ele resolveu que não iria deixar a alma do cinema morrer na cidade. Assim, com um clímax na história do filme, o cinéfilo criou o Cinema Paradiso - O Museu do Cinema, montado dentro da própria casa e inaugurado em homenagem ao pai em agosto de 2013. Ele não conta com apoio financeiro de nenhum órgão público ou privado, mas sim com a boa e velha ajuda dos amigos. “Com esse meu trabalho eu procuro preservar a história do cinema e estou muito feliz com isso, pois tem a minha dedicação. O Cinema Paradiso é minha vida, minha história”.