A educadora física teve o esporte como um divisor de águas na sua trajetória e a partir dele superou a discriminação
No tatame da vida, as lutas nunca foram fáceis para Elenilda Pereira Ferraz, de 40 anos. Negra e pobre, “Leni”, foi alvo de preconceito racial e social durante toda sua vida. Em sua infância a perda do pai, aos 6 anos, a impactou muito, de forma que repetisse seu 1º ano no ensino fundamental.
Por Thaís Leite
O cotidiano de Leni quando criança era bem restrito. Ir à escola e acompanhar sua mãe no trabalho era tudo. Das lembranças boas que tem, poder brincar na rua é uma das maiores, apesar das brincadeiras também levarem às brigas. Sempre apaixonada por esportes, a corintiana viu no judô a oportunidade de mudar sua rotina aos 8 anos, quando seu primo lhe contou sobre uma academia que estava ofertando vagas de bolsas do esporte para meninas. “Fiquei doida! Minha mãe não gostava, achava que por eu brigar muito iria piorar, mas, mesmo assim, aceitou”, contou ela.
Com a vaga conquistada e quimono no corpo, sua vida mudou. A judoca passou a se destacar no esporte e ver que tinha encontrado o seu lugar. Para a surpresa da mãe, as brigas cessaram, porque na luta ela extravasava tudo o que sentia. Característica que permanece na Leni de hoje. “Posso estar com qualquer problema, quando coloco o meu quimono me transformo. Fico outra pessoa. É onde me identifico”, afirma ela. Mas, as dificuldades financeiras permaneciam, o que fez se desdobrar para conseguir continuar no judô. Limpar o tatame chegava a ser prazeroso para a atleta, que com 13 anos já fazia faxinas e também trabalhou como jardineira, pintora e babá.
Totalmente inserida no esporte, Elenilda, não deixou mais o judô em nenhum dia da sua vida. Aos 25 anos, resolveu tentar fazer a diferença na vida das pessoas – e conseguiu. Em sua garagem ela abriu um dojô (local de treinamento de artes marciais) e começou a atender crianças desfavorecidas gratuitamente. Deste local, saíram suas maiores alegrias, dois graduados em educação física, dois faixas pretas e uma atleta do Palmeiras, candidata para substituir Edinanci Silva na seleção brasileira. Ativo há 15 anos, o projeto atende hoje cerca de 300 crianças na periferia de São José, onde recebem doações de quimonos e auxílio da própria professora “Às vezes tiro do meu bolso, mas a alegria de ver um aluno trocando de faixa não tem valor”, garantiu a judoca.
Dos momentos inesquecíveis de sua trajetória, a conquista de seu 1º dan é um dos que mais lhe marcou. A atleta passou 10 anos com a faixa marrom, pois para passar para a preta (1º dan), é necessário pagar um exame que ela não podia arcar. O desejo só foi realizado quando o dono da academia em que ela treinava pagou metade do custo da prova e lhe deu o emprego de recepcionista. Sua rotina na época foi de lutas diárias. Durante o dia atendia na recepção, à noite dava aulas em seu projeto social e quando a madrugada chegava, era o momento de voltar à academia para treinar. “Eu lembro que comprava tubaína e pão com mortadela e ia treinar. Teve uma vez que dormi no tatame de cansada. Foi muito sofrimento”. Além de todo o esforço, ela também encarou o racismo no judô, no entanto, golpeou-o e alcançou a tão almejada faixa.
O sucesso de seu projeto social lhe abriu portas. Convidada para dar aulas na Secretaria de Esportes e Lazer, Leni, foi contratada como auxiliar-técnica pela Prefeitura de São José. Porém, um tempo depois foi exigido que os professores fossem graduados para permanecerem no cargo. Foi recebendo um salário menor que o do valor de uma faculdade, que Leni, entre competições com a vida, alcançou a antes tão distante graduação.
Já graduada, a judoca não se via trabalhando em escolas, pelo trauma do que passou quando criança, porém, a necessidade a obrigou. Como professora de escolas municipais, ela observa que o preconceito ainda é presente, e que isso acontece muito pelos pais. “Tenho alunas que me imploram para não contar para a mãe delas que elas jogam futebol”, revela a educadora. Ao enxergar a quantidade de complicações do ambiente escolar, ela estudou Diversidade Escolar, e quer ajudar a mudar a realidade atual. “Não sou a salvadora da pátria, sou um grão de areia, mas onde estou vim para fazer a diferença”, afirma a professora.
Hoje, quem anda 5 minutos ao lado de Leni em uma escola consegue ver o quanto é amada por seus alunos. No rumo ao seu 3º dan, ela carrega um sorriso que nem chorando tira do rosto, ama a sua cor e vê no esporte um agente transformador, que fez dela a pessoa que é hoje: realizada em todos os sentidos da vida e com sede de conhecimento. “Quero chegar em um doutorado e ajudar as classes menos favorecidas para fazer eles acreditarem, assim como eu acreditei”, deseja sorrindo.


