Ela chegou como uma cigana, envolta em panos de cetim, seda e tafetá. Todos os olhares se voltaram para a figura magra, esguia e franzina.
por Thais Andressa
Curiosos e fascinados, os fotógrafos apontaram suas retinas para a mulher, que posava diante as lentes com leveza e graça. “Lu”, alguns chamavam, pedindo a atenção da modelo, que se deixava levar pelos raios solares que entravam pela janela do espaço, distraída na liturgia do vitral do fim de tarde. “Faça essa pose”, sugeriam, e ela atendia, com a naturalidade de uma obediente musa.
Lucilene Moreira tem 49 anos e atua como modelo vivo a mais de 20. Ela soube desde cedo que seu corpo seria seu instrumento de trabalho. Começou com a dança, que esculpiu seu corpo em músculos como o vento rasura montanhas de pedra. O tempo fez com que cada membro do corpo de Lucilene se tornasse um templo para a arte, reproduzido em desenhos, esculturas e pinturas.
“Foi uma experiência traumática”, define Lucilene, ao contar sobre sua primeira sessão de fotos nua. O embaraço fez com que ela hesitasse em tirar a roupa na frente de homens que não conhecia. Esse sentimento foi embora quando a modelo viu o resultado do trabalho. As fotos fizeram com que Lucilene se enxergasse de modo diferente e a partir daí, iniciou um resgate a diversos pontos de vistas sobre seu corpo.
Gal Oppido é arquiteto, fotógrafo, artista plástico e músico, atuando de forma independente na área fotográfica desde os anos 1990. Seu trabalho de registro da dança se tornou referência depois que fotografou para revistas do gênero. Trabalhar com Gal era um dos objetivos de Lucilene, que foi alcançado quando o fotógrafo a convidou para participar da série “Alegorias Bíblicas”.
“A fotografia posada se assemelha à escultura. A construção de imagens é feita com o corpo instruído, que é provocado a situações”, explica Gal Oppido, que recorta e sublinha seus modelos de forma abstrata. Ele e Lucilene criaram uma relação de cumplicidade, uma química que é essencial para a produção de fotografias que são o resultado da relação de quem quer ler e de quem quer se expressar. A modelo vivo participa todos os meses das oficinas fotográficas que Gal Oppido oferece no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Lucilene considera seu trabalho um estado de transcendência, um ritual que honrado com muita dedicação e seriedade. “A nudez ainda não é bem aceita, mas esse trabalho serve exatamente para quebrar o preconceito”, afirma Lucilene, que recebe reações adversas quanto ao seu trabalho, principalmente por ser uma mulher. “O feminino está banalizado; o corpo da mulher é tratado como produto”.
O poder transformador da arte faz com que cada olhar e cada caixa escura comecem uma revolução, uma troca de sensações, palavras mudas e histórias. Quando Martinho da Vila pediu para ser fotografado pelas retinas de olhos lindos, não imaginou o poder de associação que uma câmera fotográfica pode ter com a disritmia humana.
