A muralha de exclusão a ser destrinchada

Professora Carla atende separadamente seus alunos
Um bate-papo com uma mulher que luta diariamente para quebrar o preconceito e incluir seus alunos dentro da sociedade


por Kas Hoshi 

A Professora Carla Andréa Alves Corrêa tem amor aos seus alunos. Cada um deles carrega suas próprias individualidades. Uns apresentam dificuldade cognitiva, outros deficiência mental e psicomotora. Casada, e com dois filhos, compartilha sua vida entre a família e as reuniões, atendimentos, avaliações, etc. O trabalho é parte de sua vida pessoal. É mãe em casa e na escola. Pertence ao grupo docente do Integra Ativa - que conta com outros 63 professores especialistas, fora o grupo de psicólogos, fonoaudiólogos, etc. - há cerca de seis anos.  Projeto, esse, que tem como objetivo dar apoio pedagógico especializado para alunos portadores de necessidades educacionais e com distúrbios de aprendizagem. É estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394 de dezembro de 1996, o serviço obrigatório em todo o país. É nas salas multifuncionais ou de recurso, como são conhecidas, que é promovido o início da inclusão desses alunos. Foi aos 29 anos que Carla experimentou todas as áreas de estágio do Magistério, e ao realizá-lo na educação especial é que começou a despertar sua paixão. Foi durante a faculdade de Pedagogia em Educação Especial, que conseguiu um emprego na APAE e teve a certeza de seu futuro. Formou-se e hoje trabalha na área há mais de 10 anos.


Quanto tempo leva para que um professor esteja apto a trabalhar com alunos especiais?
Eu costumo dizer que a faculdade não ensina tudo para nós. O que realmente conta na educação especial é você ter esse dom, você gostar. Porque tem pessoas que fazem [a faculdade] e acham tudo bonitinho, mas quando o aluno tem convulsões, ele [o professor] sai correndo. Então é muita coisa envolvida na educação especial que você precisa gostar, pois não é fácil. Não é fácil você ver o aluno tendo uma crise nervosa e ver alguém ficando brava com ele, porque não tem, na verdade, a capacidade de entender que aquele não é o momento para gritar com ele. Tem um momento do grito, da contenção, do amor, de tudo. Mais que a teoria, é ter o coração aberto para passar por tudo isso. Você tem de ter a teoria, mas a educação especial você tem de amar. Não é uma profissão muito comum.

Qual a importância da família no desenvolvimento do estudante portador de necessidades educacionais e/ou especiais?
É tudo, a família é a base que eles têm na vida. Acontece da própria família excluir o deficiente. Na APAE, inclusive, nós tínhamos um aluno internado em regime de residência, que ele passava praticamente a vida dele lá dentro. Saía apenas para natal, férias, e às vezes ainda não iam buscá-lo. Existe então, a exclusão dentro da família. Mas quando isso não acontece, a colaboração, a compreensão, a ajuda efetiva da família é muito importante para o desenvolvimento dele. Porque nós temos de deixar claro que não é que ele é deficiente, que ele tem alguma dificuldade, que ele não aprende. Ele aprende. Ele chega ao limite dele. Mas todo ser humano, seja qual for, aprende. A questão é que as pessoas querem que o aluno saia alfabetizado, interpretando, resolvendo equações do segundo grau e sabendo todos os países do mundo. Não é assim. Tudo o que a gente aprende tem de ser considerado válido. É isso que nós especialistas enxergamos de diferente.

Quais os desafios que o aluno enfrenta nesse processo de inclusão?
Aceitação. A inclusão dele nesta sociedade escolar. Porque lá fora já é difícil pra ele; Dentro da escola é muito mais difícil. Porque não é só o aluno de inclusão que sofre a discriminação. A gente sabe o quanto de uns anos pra cá tem se discutindo a questão do Bullying dentro da escola. E muitas vezes aquele aluno que sofre Bullying não é deficiente; ele não é diferente. Então o deficiente também sofre tudo isso. Só que ele ainda tem uma característica, ele é esteticamente diferente, e por isso sofre mais ainda.

Como o AEE pode ajudar a quebrar esses desafios?
Com o tratar diferente. Você [aluno] é especial para mim. Ele sabe que ele tem o porto seguro dele aqui dentro [da escola], e que vão brigar por ele. A especialista ela tem de ter o coração diferente e o olhar diferente. Eu trabalho assim, com o olhar diferente. Vem cá que eu te aceito. Para o outro você é diferente, mas para mim você é igual a qualquer um.

O que muda para o aluno portador de necessidades especiais, como por exemplo, os da APAE, serem colocados em salas normais?
Para mim, os alunos que hoje estão inseridos na APAE há mais de 10, 15 anos, vão sofrer um pouco a discriminação. Porque eles foram treinados lá. Eles são tratados como se estivessem em uma casa e lá não tem discriminação; lá eles são realmente amados, realmente incluídos num grupo que os aceita como são. Mas por que eu sou a favor da inclusão? Porque não é que o individuo é gordo que ele não vai ser incluído na sociedade. Inclusão é incluir na sociedade o diferente: o homossexual, o negro, o gordo, o magro, o feio, o chato. Não tem tanta gente chata nesse mundo que a gente inclui? Quando o papa esteve aqui, quer exemplo maior de inclusão a que ele deu? Todos somos irmãos, somos iguais. Só que ainda tem a discriminação. A escola, a instituição, ainda não está prepara para incluir realmente todos os alunos que estão nas escolas especiais.

O que falta para que a inclusão do aluno em salas de aula normais seja realizada com sucesso?
A aceitação do outro. A quebra da muralha. O outro quebrar a muralha. É a gente trabalhar. Tenho tentado mostrar o “vamos fazer diferente?”. Não desfazendo em hipótese alguma o trabalho da professora, que ela tem 30 e na sala dela eu tenho apenas dois. Eu posso ajudá-la a fazer diferente com esses dois. Porque seu olhar global para a sala é um, e o seu olhar individual para o aluno é outro. Então eu tenho tentado mostrar que vale a pena ser diferente também.

Que tipos de dificuldades você já enfrentou com seus alunos?
Eu quase morri. Logo que eu entrei na APAE, um aluno estava medicado – o organismo acostumou e não fazia mais efeito – e entrou num surto e cismou comigo; Ele queria me matar. E eu não podia simplesmente andar pela escola sozinha. Ele pegou pedras e tentou jogar em mim. No surto eles ficam muito fortes, ai tem a questão de nós podermos fazer a contenção do aluno, mas tem todo um treino, porque você pode acabar machucando-o. E não é isso que nós queremos. Até o processo de ele ser medicado novamente, e o remédio fazer efeito e tudo de novo. Porque na verdade não era ele, era uma questão fisiológica. Então eu digo assim: se eu estou nesta profissão é porque eu amo demais isso que eu faço. E eu voltava a cada dia com mais vontade de fazer diferente. A cada dia que ele tentava me matar eu voltava e eu falava “não, eu vou viver para tratar de você”. E foi o que fiz até o último dia que estive lá. Ele me amava e era só uma questão fisiológica.




O que muda para um aluno portador de necessidades após frequentar as aulas de recurso?
Muda a forma de ensinar. Na sala de aula o professor tem mais alunos e ele tenta da maneira dele ajudar na sala de aula. Porém aqui no recurso, nós temos a disponibilidade de trabalhar diferente, de uma forma individualizada. É o momento que ele tem de se realizar como aluno. Ele está incluído na escola, mas às vezes pela dificuldade que ele tem, talvez seja muito grande, ele não consegue acompanhar efetivamente a matéria de uma sala de 7º ano, por exemplo. Aqui é onde a gente tenta alcançar e correr atrás dessa defasagem

Qual é o seu grande desafio como educadora?
 Ver a inclusão definitivamente inserida na educação.

Em relação à cidade, existem mudanças previstas para o AEE de Taubaté?
A educação especial vem sofrendo mudanças. E realmente a educação especial funciona, na questão federal de 96, na sala de recurso tem de ser atendido estritamente alunos com: deficiência mental, transtornos globais, altistas, deficiência visual, física, etc. Em Taubaté, entrava na Sala de Recurso as dificuldades, os distúrbios, os déficits cognitivos, de atenção. Então nós fomos pegando todo mundo, nós fomos recebendo, fomos abraçando a causa. O que aconteceu foi que nossas salas ficaram superlotadas. O aluno de dificuldade, seja qual for, já era meu. Então, teve uma época em que eu tinha 15 alunos aqui na sala de recurso e era tudo misturado. E tinha de dar conta. E agora nós vamos trabalhar com a inclusão, na sala multifuncional, com os que realmente têm de ser incluídos nela de acordo com a Resolução nº4 de 2009. E a minha função é orientar o professor e ajudá-lo no que for preciso. Antigamente ele ficava lá [na sala de aula] e eu ficava aqui; nós tínhamos muito pouco tempo para conversar sobre determinado aluno. Eu fazia de um jeito e ele fazia de outro. Aqui dava certo e porque lá não dava? Agora não. Agora eu vou ter meu grupo de sala multifuncional e aquele um que tem dificuldade, que tem o déficit, que tem o transtorno da hiperatividade eu vou ajudar lá na sala, efetivamente com a professora e buscando estratégias para trabalhar de uma maneira melhor com aquele aluno dentro da sala de aula. E quando for um caso de inclusão, eu estarei aqui fazendo o atendimento efetivo. Agora nós estamos nos adequando as novas regras da educação especial que foi mudando com o tempo. É bom lembrar que aqui no vale, Taubaté está anos-luz de outras cidades, porque nós temos Polos que contam com uma equipe de psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos, etc. todos juntos em prol desse aluno especial. E é por isso que nós acreditamos que tem de dar certo, e nós vamos fazer diferente para a inclusão acontecer aqui na nossa cidade.

Os professores mediadores eles tratam da inclusão dos indivíduos que sofrem Bullying. Como você encara essa iniciativa?
A professora tem de estar consciente que ela vai lidar com problemas, com o difícil, com jovem que é o problema da escola, com o Bullying, com drogas. Eu acho que é de extrema importância. Se tivesse na escola municipal, ia ser muito bom. Eu sou a favor. Era o que faltava, não adianta a gente botar de castigo no banquinho sem ter um por que, uma conversa. É o que falta, o diálogo entre professor, aluno, direção.

Como os estagiários de pedagogia que trabalham na escola podem ajudar no processo de inclusão dos alunos?

Nós orientamos que ele é um estagiário de um aluno de inclusão. Mas o que é um estagiário de um aluno de inclusão? Ficar só com ele? Se ele pegar o aluno de inclusão e ficar lá no fundo da sala, sozinho, ele tá incluindo? Não. O estagiário tem de auxiliar a professora com os outros alunos, para que ela - que é responsável pela sala de aula - ensine aquele aluno [especial] em alguns momentos.